25/09/13

À Sombra de nós mesmos

(Crónica publicada na revista Mais Alentejo de Agosto/Setembro 2013)


À SOMBRA DE NÓS MESMOS

Junto à casa de meus pais, no Alentejo, habitava a terra seca um sobreiro grande e velho, que tinha um longo ramo estendido para um dos lados, preparado para os deleites de um jovem que, como eu, nele se quisesse deitar. Quando a vida me aborrecia, sobretudo nos verões quentes, em que o calor impedia até o tempo de circular, deitava a guitarra sobre um dos ombros e o meu caderno sobre o outro, e rumava àquela árvore que me esperava sem caprichos ou dependências.
Cresci à sombra dessa árvore, nas páginas dos meus cadernos. Às vezes num poema, outras tantas em palavras que se atropelavam como chuva, a chuva que não chovia, no meu Alentejo amarelecido. Até que a vida me levou a trocar o meu Alentejo de sobreiros por uma rua sem árvores. Busquei depois o mar e hoje escrevo em frente a uma palmeira, que repousa em relva fofa. O caderno é hoje um computador portátil e leve. A guitarra, repousa no quarto dos meus filhos, para outras músicas. E o meu tronco é agora um cadeirão confortável e acolchoado, por vezes resguardado atrás de um vidro, se a temperatura a isso exige. Só as palavras, essas, continuam a ser fundamentais para me ajudar a fazer parte do mundo. Às vezes ainda surge um poema. Mas são sobretudo as ideias inquietantes, à procura de serem ditas, com vontade de serem pensadas, que me assaltam as horas, como dantes, como sempre.
À minha volta, tenho agora filhos em busca da sua forma de crescer, e parece-me fundamental oferecer-lhes a possibilidade de irem ao encontro da “sua” árvore. De fazerem essa busca de si mesmos e de um entendimento de tudo aquilo que os rodeia. Quem somos, de onde vimos e para onde vamos. Perguntas talvez sem respostas satisfatórias, mas que terão de sair de nós um dia, pelo menos, para que aquilo que faz de nós humanos não nos escape, nas tantas distrações da vida (e o trabalho, com todos os seus frutos, é a maior delas todas). Nietzsche dizia, em “Humano, demasiado Humano” que aquele que não reserva, pelo menos, ¾ do dia para si, é um escravo. Na cidade grande, o tempo consome-se, tudo parece uma urgência inadiável e uma necessidade maior do que as nossas próprias necessidades. Os adultos são escravos. E as crianças também. Vivem em escolas sem árvores (ou, ainda que as tenham, sem tempo para nelas se pendurarem, porque têm tudo para saber e tudo para ser avaliado), mais tarde em vidas paralelas, em rede, numa vertiginosa corrida pelos sms e os chats, onde até as palavras ficaram meio comidas, na pressa de viver. Os jovens percorrem os centros comerciais em busca de desligar o pensamento, como se ele fizesse mal, numa sociedade que se quer amorfa, impotente e, ironicamente, obediente (como se alguém pudesse obedecer a vida toda sem saber porquê. Quem nunca entende o porquê, invariavelmente, desobedece...).
De frente para a palmeira que me resta, desagrada-me a sociedade que vejo e aquilo que estamos a fazer do Homem. Sinto a impotência que tantos outros sentem, para mudar de cima para baixo o que está mal, mas de baixo para cima, tudo me parece ainda um imenso campo de possibilidades. A geração que hoje ajudamos a crescer e um dia nos sucederá tem de rumar outra vez até junto das árvores que a obrigam a pensar. Terá de reaprender a entender a natureza e nela descobrir também a sua. Terá de ler, de escrever, e sobretudo de procurar um espaço, na sua vida, para se descobrir, porque um jovem que não se “encontre” no tempo certo, nunca saberá onde encaixar-se na máquina da vida, onde cada peça é fundamental para o desempenho do todo. É um desafio gigante e complexo, mas urgente e fundamental, nos dias que correm. E talvez ele passe, simplesmente, por sair à rua (rumar ao Alentejo, porque não?) e procurar uma árvore que nos ofereça os seus ramos para neles desfiarmos a nossa vida...


Sara Rodi

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