14/05/14

De Pessoa para Pessoa

Pessoa assoma-me quando menos espero.
Gozando-me, sempre que em mim há certezas.
São poucas as vezes em que me permito tê-las, mas se uma me vislumbra, aquela que soa como a mais incompreensivelmente verdadeira, Pessoa espreita-me. Ri-se de mim. Diz-me que nada é nada, e que isso é muito mais verdade do que tudo é tudo.

- Preciso entender.
- Entender não é para os vivos - responde-me.
- E o que é para os vivos? A mentira?
- Tudo menos a verdade verdadeira. Aquela que roubaria o sentido ao teu mundo, porque o teu mundo é necessariamente de mentira, ou não seria mundo.

Digo-lhe que fui longe demais. Que não posso esquecer o vi. Esquecer o que senti. E ele cita-me Caeiro. Ah, Caeiro! Se eu soubesse resignar-me ao mundo que é mundo, o de aqui e o de agora, o do tempo e da distância, sem me fugir a alma para onde não deve... sem me escapar o espírito para onde não pode ir.

- Talvez precises do absurdo para escrever - sussurra-me irónico.
- Eu não quero escrever! Quero viver...
- E o que é a tua vida sem a escrita? O que és tu sem as palavras? Resigna-te. Serás sempre uma sombra de infelicidade num rosto feliz.
- E se eu não quiser?

Coloca-se em posição de Íbis e faz-me rir. Tonto! Tonto Pessoa! Não o quero comigo e todos os dias me enleio nele, entendendo o que não quero entender. Ou quero mas não devo. Ou devo mas não consigo. Mordisco a maçã da árvore da verdade, aquela que Deus proibiu para que os homens nunca deixassem de ser homens, e sofro agora o castigo divino, o de ir além do permitido.
Mas o que é uma dentada de maçã, sem a maçã inteira?
Sou expulsa do paraíso mas ausente também da realidade que agora não me chega.

- Não tens outro remédio. Escreve...

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