10/06/14

A criação do mundo

Inversão do relato da criação por Jorg Zink

“ No princípio, Deus criou o céu e a terra.
Depois de muitos milhões de anos, o homem criou
Coragem e resolveu assumir o comando do mundo e do futuro. Então, começaram os sete últimos dias da história...
Na manhã do primeiro dia,
O homem resolveu não ser mais a imagem de um Deus, Mas ser simplesmente homem.
E, como devia acreditar em alguma coisa,
Acreditou em liberdade e felicidade,
Em bolsa de valores e progresso,
Em planeamento e desenvolvimento
E especialmente em segurança.
Sim, a segurança era a base.
Disparou satélites perscrutadores
E preparou foguetes carregados de bombas atómicas. E foi a tarde e a manhã do primeiro dia.
No segundo dia dos últimos tempos, Morreram os peixes dos rios Poluídos pelos dejectos industriais; E morreram os peixes do mar
Pelo vazamento dos grandes petroleiros
E pelo depósito do fundo dos oceanos;
Os depósitos eram radioactivos,
Morreram os pássaros do céu
Impregnados de gases venenosos-inversão térmica. Morreram os animais que atravessavam incautos As grandes auto-estradas,
Envenenados pelas descargas plúmbeas
Do trânsito infernal.
Mas morreram também os cachorrinhos de estimação Pelo excesso de tinta que avermelhava as línguas. Foi a tarde e a manhã do segundo dia.
No terceiro dia,
Secou a erva dos campos,
A folhagem das árvores
O musgo nos rochedos
E as flores nos jardins.
Porque o homem resolveu controlar as estações Segundo um plano bem exacto;
Só que houve um pequeno erro
No computador da chuva,
E até que descobrissem o defeito,
Secaram-se os mananciais
E os barcos que singravam os rios festivos Encalharam nos leitos ressequidos.
E foi a tarde e a manhã do terceiro dia.
No quarto dia,
Morreram quatro dos cinco biliões de homens;
Uns contaminados por vírus cultivados em provetas eruditas, Outros por esquecimento imperdoável
De fechar os depósitos bacteriológicos,
Preparados para a guerra seguinte;
Outros ainda morreram de fome
Porque alguém não se lembrava mais
Onde escondera a chave dos depósitos de cereal;
E amaldiçoaram a Deus:
se Ele era bom porque permitia tantos males?
E foi a tarde e a manhã do quarto dia.
No quinto dia,
Os últimos homens resolveram accionar o botão vermelho,
Porque se sentiam ameaçados.
O fogo envolveu o planeta,
As montanhas fumegaram, os mares evaporaram.
Nas cidades, os esqueletos de cimento armado
Ficaram negros, lançando fumo das órbitas abertas.
E os anjos do céu assistiram espantados
Como o planeta azul se tornou da cor do fogo,
Depois cobriu-se de um castanho sujo e finalmente ficou cor de cinza Eles interromperam os seus cantos durante alguns dez minutos,
E foi a tarde e a manhã do quinto dia.
No sexto dia,
Apagou-se a luz,
Poeira e cinza encobriam o sol a lua e as estrelas. E a última barata que tinha escapado
Num abrigo anti-atómico
Morreu por excesso de calor.
E foi a tarde e a manhã do sexto dia.
No sétimo dia,
Havia sossego, até que enfim!
A terra estava informa e vazia,
As trevas cobriam o abismo
E o espírito do homem pairava sobre o caos.
Mas no fundo do inferno
Comentava-se a história fascinante
Do homem que assumira os comandos do mundo, E gargalhadas estrondosas
Ecoaram até aos coros dos anjos.
Meus senhores, nada impede que o homem vá até
Ao fim das suas possibilidades; mas resta ainda uma esperança, Que o mundo e com ele, o homem e o seu futuro,
Estejam nas mãos de um Outro.....”

In Do eu solitário ao nós solidário, Verso da Kapa, 2011.

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